MULHERES PRETAS QUE MOVIMENTAM #8 - RENATA FELINTO

por Karina Vieira
Foto: acervo pessoal
      Renata Felinto é artista. Dizendo assim, nem parece que essa palavra dá conta de tudo que essa mulher já realizou. Renata transborda, grita, põe na voz, no desenho, no corpo, na vida toda a arte que lhe cabe, seja nos seus post, no seu Flickr ou mesmo no seu blog. É paulista e atualmente reside em Crato, mas leciona em Juazeiro do Norte, atuando como professora na URCA (Universidade Regional de Cariri). Coordenadora/parceira de ações em instituições como a proponente da Pinacoteca do Estado de São Paulo e conselheira editorial da revista O Menelick 2º ato.

MBP - Quem é você? 

Renata Felinto - Eu sou Renata Aparecida Felinto dos Santos. Adotei Renata Felinto como sintético porque é menos comum. Ele é parte da família de meu pai, porém adoraria ter o Nascimento Benedito da família da minha mãe, herança da nossa escravização que meu pai achava feio e não deixou colocar, porém que considero importante não esquecer. É uma marca a ferro simbólica e duradoura. Não consigo me definir apesar de sempre pensar sobre mim, minha existência e etc. Poderia dizer que sou como uma formiga que faz tudo aos poucos e simplesmente faz, porque deve ser feito.

MBP - Como se deu a descoberta da sua negritude? 
RF - Minha família é negra da zona norte de SP por parte de pai e de mãe. Ela é negra na cor que o senso comum acha que deve ser o negro, somos marrons de cabelos crespos. Assim, nunca usamos a palavra moreno para nos definir, sempre fomos negros. O que aceitei ao longo da minha vida foi a relação com meus cabelos cujos cuidados estavam sempre entre as tranças e a chapinha ou algum tratamento químico para "soltar" os cachos, que me fizeram acreditar ser mais fácil. Minha família sempre conversou sobre racismo do ponto de vista da vivência e não do ativismo, até porque eram pessoas muito simples, mas com uma consciência de coletivo étnico-racial. Aos 25 anos me relacionei com um homem branco que perguntou por que eu não deixava meus cabelos naturais, que ele considerava lindo. Aí criei coragem porque tive o aval do homem que eu amava e que me amava, ele me achava bonita assim. Essa coisa de chapinha, química, entrelaçamento tem a ver com a insegurança que depositam na nossa imagem natural.

MBP - O que te levou a escolher a sua profissão?
RF - Eu sempre gostei de imagem, de cor, de observar especialmente imagens que me transmitiam algum significado. Juntei a esse gostar o fato da arte ser uma área das mais importantes para se pensar a humanidade. Cada vez que aprendia mais, me encantava mais. Eu gostaria de ser somente artista visual, porém também gosto muito da pesquisa, da escrita, da reflexão por meio da história das artes visuais. Decidi quando me dei conta de que havia uma universidade para além da lendária e elitista USP que oferecia o curso de artes visuais e que me parecia menos impossível de ingressar, a UNESP. Eu ouvi quando criança e disse que queria cursar faculdade: "quem vai pagar?". Sequer minha família sabia que existia universidade pública, para termos ideia das dificuldades e da exclusão. PROUNI, FIES, ENEM, agradeçam que existem essas políticas públicas. Precisamos de mais outras, entretanto, essas hoje são fundamentais para o aumentos de negras e negros nas universidades.


Foto: acervo pessoal
MBP - Como foi o caminho da sua graduação? 
RF - Ainda no Carlos de Campos que é uma ETEC voltadas às artes que existe no bairro do Brás/SP, uma amiga de sala falou que prestaria vestibular em artes plásticas na UNESP, que ate então eu desconhecia. Pensei muito praticamente: "se ela estudou os mesmos conteúdos que eu e vai prestar, é possível que eu passe". Fiz um ano de cursinho aos sábados trabalhando a semana inteira das 08h às 18h. Eu dormia nas aulas de exatas porque eram e são muito difíceis para mim, e chegava cansada de Itaquera até o Butantã, não existia metrô ainda, tinha que tomar dois ônibus e metrô... Perdi o vestibular neste ano e estudei em casa no ano seguinte quando tentei  novamente. Não passei na primeira chamada e nem vi mais a lista, nem imaginava que havia a tal lista de espera, desistências e tudo mais. O mundo acadêmico era totalmente desconhecido. Semanas depois chegou um telegrama dizendo que se eu não comparecesse para fazer a matrícula naquela semana, perderia a vaga. Minha irmã quem me deu a notícia muito feliz!!! Então, era diariamente um trajeto de três horas da COHAB II até o Ipiranga, quando não existia estação de metrô Ipiranga. Ônibus, metrô e ônibus. Acordando 5 da manhã para chegar atrasada ou às 07h30, se chegasse cedo. Dificuldades para adquirir livros, materiais, intercalando o estudo e o cumprimento dos trabalhos acadêmicos e artísticos com o trabalho de telemarketing. Ao mesmo tempo, eu pensava sobre a ausência nas disciplinas no curso em relação aos conteúdos de história da arte que tratassem da cultura africana, afro-brasileira, mas eu nada dizia. É um lugar muito opressor. Isso me incomodava demais e me invisibilizava diante dos colegas, porque é aquela coisa: "nossa história", mas eu não apareço na história. Haviam os professores como meu orientador, Percival Tirapeli, que compreendia essa minha realidade e aqueles que me humilhavam por chegar atrasada (por ser negra e pobre, na verdade). Foi difícil, mas valeu a pena não ter desistido. Era a única alternativa que eu via para ter conforto, ser uma profissional realizada ou próxima disso.

MBP - Quem são as pretas e pretos que te inspiram?  
RF - Olha, as mulheres pretas me inspiram demais. Exceto as que corroboram o machismo, todas me representam. Os homens pretos me inspiravam, porém também me decepcionaram e decepcionam muito quando observo que SEMPRE, sem exceção, são as mulheres brancas que escolhem como parceiras, como uma espécie de troféu que valida o sucesso deles e, ainda trazem justificativas absurdas como "amor não tem cor". Quando esses homens estudam e conhecem a nossa história parece um grande contrassenso, trabalham com a nossa história, porém não servimos para fazer parte das histórias deles sendo tratadas com amor e respeito. Somos irmãs mesmo, não companheiras. Dizer que não existimos no meio deles, que não ascendemos social e profissionalmente, não é verdade. Pois bem,  gosto muito do Carlos Moore, ele é fantástico, aprecio a postura dele no mundo e o aprender a nos amar, a nós negras. Eu mencionaria também o Emanoel Araújo, evidentemente, pelo conjunto de sua obra; o Sidney Amaral com uma linda pesquisa artística na qual tem trabalhado afetividade, estou esperando ele chegar nesse lugar do relacionamento; o Salloma Sallomão, que tem uma maravilhosa pesquisa sobre etnomusicologia e teatro negro; o Nabor Júnior pela sua ação com a O Menelick 2º ato; meus irmãos o Marcos, Edson, Victor, por estarem se encontrando, se repensando, fazendo seus corres com honestidade. Sobre as mulheres, eu admiro cada mulher negra sobrevivente neste mundo, cada uma, até a Naomi Campbell tão criticada por ser "mal educada". Negra tem que se submeter, né? Só me chateia as que coadunam com a violência ao manter relações, mesmo de sociabilidade, com homens que apresentam comportamento machista, violento e abusivo quando isso atingiu amigas, conhecidas, desconhecidas, ou a história pública. Acho um absurdo! Mas eu gostaria de destacar a minha mãe, Lilian, um verdadeiro exemplo, a Rosana Paulino que tem um impacto enorme na minha produção de artista visual, a corajosa Stephanie Ribeiro, a Djamila Ribeiro, a Ligia Ferreira, a Aparecida Bento do CEERT, a Cecília Calaça, a Elizandra Souza, Elvira Diangany Ose, a Diane Lima do NoBrasil, a Janaina Barros, a Venessa Lambert, minha tia Leila, a vó Alba, , a tia Célia, a irmã Roberta Felinto. Enfim, cada uma de vocês é uma sobrevivente da falta de amor, da falta de empatia, de carinho, de cuidados, de respeito, em maior ou menor grau, e eu admiro que estejam em pé, que levantem a cada manhã dispostas a viver num mundo que não nos ama como deveria.

MBP - Quem é aquela mulher preta que você conhece e quer que o mundo conheça também?
RF - Todas as atrizes da Capulanas Cia de Arte Negra: Débora Marçal, Priscila Obaci, Flávia Rosa, Adriana Paixão e Carol Ewaci. A Janaina Barros, artista visual. A Elizandra Souza poeta, a Luciane Ramos dançarina, a Michelle Mattiuzzi que é performer. Mulheres negras que têm transformado as nossas experiências profundas, dolorosas, afetuosas em arte.

MBP - Na sua trajetória profissional o quanto avançamos e o que ainda temos que avançar?
RF - Enquanto mulheres negras nós pouco avançamos. Ainda morremos mais nos partos, somos as maiores vitimas de câncer do colo do útero, somos as que mais sofrem violência doméstica e sexual, somos as mulheres abandonadas que criam as crianças sozinhas, somos as mulheres com quem transam no meio da noite e não levam para jantar. Ao mesmo tempo somos as empreendedoras que mais crescem economicamente, as que mais estudam agora com as políticas públicas, as que estão aprendendo, apesar de tudo, a amar a nossa natureza negra de cabelos que crescem em direção aos céus, somos as misses [risos]. Temos que aprender a nos impor diante do amor, ele não pode tudo, ele não nos governa.

MBP - Como você lida com a sua estética negra? 
RF - Para os cabelos eu uso linha específica para cabelos crespos da Lola, a Crioula. Xampu, condicionar e umidificante de coco. Para o rosto eu uso Dove para banhar e lavar o rosto. Uso hidratante no rosto e no corpo. Eu saio sempre maquiada. Gosto, me faz bem. Uso sempre o mesmo perfume, uma colônia de proteção que deixo junto das minhas entidades. Gostaria de fazer exercícios, mas agora não tenho nenhum tempo mesmo.

MBP - O que é representatividade pra você?
RF - É me ver, ou ver alguém que se pareça comigo em TODOS os espaços. Representatividade é equidade.

Conheça as artes da Renata Felinto: Flickr

This entry was posted on 18/07/2016 and is filed under ,,,. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. You can leave a response.

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