por Jaciana Melquiades
Não é raro nas escolas em
que tenho a chance de trabalhar ter acesso à crianças, adolescentes, jovens
adultos, todos da periferia, que tenham poucos ou nenhum sonho relacionado ao
futuro profissional. Após uma atividade realizada recentemente pelo o Coletivo Meninas
Black Power, me perguntei qual seria a razão de crianças de 10, 12 anos não
conseguirem sonhar profissões mirabolantes, imaginar futuros grandiosos ou
postos fabulescos (muito comum essa ação quando falamos de crianças!). A
imaginação é pura potência, e andar na contramão é tentar ser força
estimuladora de sonhos em crianças que vivem a realidade da violência
banalizada (violência que nem sempre é explícita, berrada ou anunciada), da
escola-depósito, da ofensa gratuita.
* SOUZA
e SILVA, Jailson de e Barbosa, Jorge Luiz. Encontros e Rupturas entre as
facelas e os outros territórios da cidade. In: Favela
– alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Editora SENAC/Rio, 2005
Foto: Jaciana Melquiades |
Um dia desses disse ao meu
filho que ele não se deitasse no chão, pois já estava com pijama, pronto pra
dormir. Ele, criança de 3 anos, deitou, rolou e veio correndo me abraçar. Eu
fiz uma careta dizendo: "Mas você rolou no chão! Eu disse que ficaria todo
sujo!". Ele ficou cabisbaixo. Foi contar ao pai com tristeza que eu disse que
ele estava nojento. Não usei esse termo NOJENTO. Vasculhando a memória, já usei
várias vezes associado a alguma comida que eu desgoste, ao lixo acumulado, mas
nunca me referindo a uma pessoa, muito menos ao meu pequeno. Mas ele já viu meu
semblante usando o termo... Provavelmente fiz a mesma careta e o termo nem
precisou ser verbalizado para que fosse apreendido por um menino de 3 anos.
Sempre penso muito no que
ando fazendo enquanto mãe de um menino preto de 3 anos, no que digo a ele
cotidianamente, nas palavras que uso. Uma vez disse: "Venha cortar essas
unhas... Estão pretas, veja!". Meu coração gelou assim que proferi essas
palavras: como vou construir a autoestima no meu menino usando o termo "preto" associado à sujeira? Cada sutileza, cada palavra mal dita deve ser pensada,
refletida, elaborada e eliminada da fala.
Os lugares que ocupamos
socialmente são reflexo do horizonte de expectativas que criamos. E não criamos
sozinhos, sem exemplos, sem levar em consideração o que ouvimos ao longo de
nossa formação enquanto sujeitos. Esses dias, por conta de trabalho, li um
texto do Jailson de Souza, do Observatório de Favelas, sobre os encontros e
distanciamentos entre a favela e outros espaços da cidade¹. Ao longo do texto,
o questionamento que vai sendo deixado ao leitor é o de como seria possível
ampliar os horizontes de expectativas dos jovens das periferias. Como seria
possível construir, reformar, aumentar, elevar a autoestima dos jovens negros
que acessam diariamente a fala racista e excludente mesmo através do não-dito?
O racismo engessa,
classifica e enquadra pessoas em lugares sociais específicos. E ele é também
construção, uma ficção que mata um sem número de jovens negros diariamente. A
história que nos contam desde o nosso primeiro contato com a escola é de
derrotas e falências da população negra; Não tem glória nem luta nos livros de
história que nos apresentam. Não tem beleza nem positividade nos termos racistas que usam para nos definir.
Não tem passado nem unidade na trajetória da população negra que chega até nós, e mesmo nossos
sobrenomes não são uma pista muito confiável para saber de onde viemos.
Foto: Jaciana Melquiades |
Tenho aprendido muito com
meu molequinho. A percepção dele do mundo tem me colocado diariamente em frente
a um espelho que amplia minhas ações, minhas falas, minhas caretas. Ele repete
o que eu sou e me deixa perplexa diante de minhas falhas. Chance diária pra
repensar, me desculpar e me refazer.
Jaciana Melquiades, mãe do Matias, é historiadora, educadora, empresária e integrante do Coletivo Meninas Black Power. |