por Cecília Oliveira
Foto: Fernando Oliveira |
Há um ano e seis meses,
resolvi recomeçar a vida. Balzaquiana,
decidi cortar todo o cabelo e me conhecer e reconhecer como mulher negra. Foi
resultado de longos estudos sobre identidade, história, negritude. Seria um gran
finale de aceitação.
Foram meses lendo sobre textura, tratamentos, cronogramas capilares etc.
Era um mundo que eu não fazia ideia de que existia. Primeiro entrave: como
escolher os tratamentos/produtos adequados ao meu cabelo se eu não conhecia meu
cabelo? Nas leituras, descobri que existem cabelos de 2A até 4C. Mas qual era o meu tipo? Eu não fazia ideia. Eu
precisava saber qual era pra saber como criar meu cronograma
capilar e aprender a hidratar,
nutrir e reconstruir a massa do cabelo para mantê-lo saudável. E aí, diante da
minha decisão, ouvi duas perguntas: “Isso é caro? Vai dar mais trabalho?” Oras!
Caras e trabalhosas eram as escovas progressivas para alisar os cabelos!
Alisei os cabelos pela primeira vez – ao que me lembro – lá pelos 8 ou 9
anos, com a então famosa e maldita "touca de gesso". Lembro de ter me sentido
absolutamente ridícula em ficar com cabeça "engessada" por mais de uma hora.
Era uma coisa fedida, que deixou meu couro cabeludo vermelho e sensível durante
uns dias. Desde então, a cada três meses, lá estava eu de volta, para "domar" aqueles insistentes cabelos que me tiravam o sossego –
e a beleza.
Beleza: tá aí uma coisa que
"nunca tive". Sempre me achei muito feia. Magra, "cabelo duro", espinhas,
"moreninha". Tudo pra ser preterida. E assim foi por muito tempo. Lembro com
clareza de quando chegou a época da formatura da oitava série e precisavam ser
formados pares para a cerimônia (não vou entrar no mérito dessa convenção
social machista agora). Lembro que eu tinha um grupo de amigos, e nenhum deles
quis entrar comigo na tal cerimônia. Ouvi um deles falando: "prefiro a Eduarda.
Mais bonita". Eduarda, com seus longuíssimos cabelos lisos e branquinha, era
mais bonita. Claro. Hoje entendo a beleza de Eduarda. E a minha. Lembro ainda
uma outra vez em que eu estava varrendo a varanda de casa e uma pessoa,
procurando por minha mãe – que é branca e viúva de um negro – perguntou se "a
dona da casa estava". Cada qual no seu lugar, certo? Errado.
ANTES "MORENINHA". AGORA, NEGRA E….
GAY?
Pixaim, palha de aço,
Bombril, vassoura, leoa, sarará, cabelo duro, cabelo ruim, piaçava.
Ouvi isso a vida inteira, mesmo depois de alisar o cabelo, já que ele, mesmo
alisado, não tinha a aparência adequada, de naturalmente liso. Mas, aleluia, um
dia chegou o dia do Big Chop ("BC" para os íntimos), a hora de
cortar tudo. Eu estava tão ansiosa que não aguentaria passar pela transição, forma como muitas meninas
conseguem manter o cabelo alisado até ter o tamanho suficiente de cabelo
natural pra não precisar cortar "Joãozinho".
Foto: Anderson França |
Pois eu cortei "Joãozinho". E ganhei mais um rótulo imediatamente. Passei a receber olhares,
questionamentos sobre minha sexualidade e até vivenciei a homofobia, quando um
homem bradou: “isso é uma pouca vergonha! É culpa do Lula e do politicamente
correto a gente ter que ver isso!”. Eu estava tomando um suco com uma amiga –
também de cabelos curtos – numa lanchonete perto de casa. Peguei uma cadeira
para “educa-lo”, mas fui contida. Melhor assim.
ACEITAÇÃO: UM ATO POLÍTICO.
"Será que você consegue um namorado agora, com esse
cabelo?", "será que consegue um emprego?", "sua criança vai sofrer bullying na escola?". Não vou dizer que não
pensei nestas coisas. Mas vou dizer que pensei mais nas respostas. Eu gostaria
de me relacionar com alguém que me avaliasse e me desejasse de acordo com meu
cabelo? Eu gostaria de trabalhar num lugar em que a capacidade das pessoas
fosse medida pelo cabelo? Eu matricularia minha criança em uma escola que mandasse cortar o cabelo,
como um uniforme? Eu me submeteria ao racismo? Eu realmente quero me retirar
destes debates e me recolher ou quero lutar com as pessoas pela garantia de
direitos de todos e pela mudança desse cenário medíocre e criminoso?
As respostas a essas perguntas são políticas. Somos seres
políticos. Existir é um ato político. Existir como mulher negra é um duplo
exercício de luta pela cidadania e plenitude de direitos. Deixar seu cabelo pro
alto, no lugar onde você decidiu que ele deve estar, é uma afronta. Uma afronta
à “ordem natural das coisas”, onde o negro tem seu lugar muito bem delineado – um
lugar num cantinho, mais ao lado, mais na cozinha, um segundo lugar. Uma
afronta ao Estado Brasileiro, que teve uma
política oficial de branqueamento de seu povo, focando na
miscigenação e no estabelecimento de uma população morena. Negra não. Esta
coisa ruim tinha que ser apagada.
Foto: Fernando Oliveira |
Aceitar-se
é uma afronta a um Estado cuja polícia federal exige que se prenda os cabelos para ter direito a tirar um
documento. Afronta a um
Estado que mata majoritariamente negros. Afronta a um Estado cujos cargos de chefia são
ocupados em sua esmagadora maioria por homens brancos, que ganham 36% mais que os homens negros e 47,8% mais que as mulheres negras. Eu nasci pra afrontar esse Estado, pois nascer e
viver sob esse Estado é uma afronta.
RACISMO SEM FIM
Como esperar que uma criança não reproduza o racismo ou se acostume a sofrê-lo se ela não reconhece ao seu redor negros em posição que não seja subalterna? Como isso é possível sem que sequer haja bonecas negras pra brincar, bonecas com sua cor, seu cabelo, sua boca e nariz, sua identidade e que mostrem à criança que ela é bela e merece ser copiada?
Como ser negro pode ser algo bom, não depreciativo, se pessoas da sua cor sequer aparecem no cinema, se não têm representatividade? Quantos negros protagonizam novelas que se passam no Leblon, são ricos, patrões, tem casas bonitas na beira do mar (protagonistas de senzala, em novelas de época não contam)? Mulheres negras no cinema praticamente não existem, mesmo que nós sejamos 52% da população feminina do país.
NÃO
PASSARÃO!
Nós, mulheres e homens negros, construímos este e outros países.
Carregamos o Brasil nas costas ainda hoje, mesmo ganhando bem menos pra isso e
morrendo mais cedo e em maior número. Mas aprendemos a resistir e, a cada dia,
aprendemos a peitar aqueles que acham que aqui não é nosso lugar. Nós vamos
lutar para viver mais e melhor e vamos ensinar nossos filhos que nosso cabelo, nosso nariz, nossa pele são as características da liberdade e da resistência e que temos, sim, direito a um lugar ao sol.
Cabral, o retrato da desinteligência nacional |
Nós,
mulheres negras, vamos continuar procriando, mesmo que governadores brancos nos chamem de "parideiras de
marginais". Nós vamos
afrontar este Estado e mostrar que nosso lugar não é na cozinha.
(O
título do texto é uma alusão à música de Cabelo Pixaim, de Jorge Aragão.)
Cecília
Oliveira é Jornalista e pesquisadora, com especialização em
Criminalidade e Segurança Pública pela UFMG, é coordenadora de comunicação do
Law Enforcement Against Prohibition – LEAP Brasil. Indicou o texto,
originalmente postado no site Ano Zero, para ser postado no blog MBP.
Olá camila ! Sou homem e nunca comentei num site sobre luta das mulheres e to achando esse aqui muito legal !
ResponderExcluirEu moro na periferia do RJ e sou descendente de indígenas e negros e recentemente descobri que sofro preconceito (tenho 20 anos). Minha pele é morena e por isso não sofro como os homens negros e muito menos como as mulheres negras e além disse meu cabelo não é crespo. Eu lembro que quando raspava a cabeça, entre 16 e 17 anos as pessoas achavam que eu era ladrão ao subir no ônibus e minha própria família diziam que eu parecia um marginal. Eu acho que o preconceito é relativo a minha pele, porque se eu deixo o cabelo crescer eu sou minimamente aceito, ou seja, eu sou a mesma pessoa com o cabelo grande ou raspado, mas o cabelo grande me faz parecer branco, europeu, sei la o que. Mas mesmo assim já fui seguido dentro de loja e recebi olhares estranhos em alguns lugares da classe média.
Percebi também que se eu "abro a boca" toda a aceitação acaba. Eu uso gírias as vezes e tenho um jeito que faz as pessoas pensarem "olha o favelado" ou "olha o pobre".
ps: Eu conheço o LEAP e fiquei feliz de saber que voce trabalha lá ! Moro no complexo do alemão no RJ e acho que a guerra contra as drogas foi a pior coisa que inventaram depois da escravidão.
Linda.
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